Agora foi a vez do Dalton Trevisan. 99 anos. Vivia recluso em sua residência.
Lembro-me da época de faculdade, o curso de Letras da Unioeste. Tínhamos um professor de Literatura que via nos contos de Trevisan inúmeras possibilidades para elaborar aulas que provocassem discussões acaloradas. Ele adorava ver-nos brigando para defender ou acusar as personagens apresentadas na visceral literatura do autor. O Vampiro de Curitiba, como ficou conhecido após a publicação da obra de mesmo nome publicada em 1965, permitiu-nos aulas intrigantes e intrigueiras. Hoje os primeiros noticiários do dia informaram o óbito. Diziam que ele vivia recluso e nessa hora duvidei da notícia. Como podem afirmar que um autor de tal grandeza literária e de tantos escritos vivia preso, enclausurado, metido em cela, para quem não busca o significado das palavras com veemencia como eu, aceitaria essa palavra com naturalidade: "recluso". Dalton está muito livre, solto, a transitar por corredores universitários, por entre alunos de ensino fundamental e médio, de mão em mão, de tela em tela. O vampiro voa.Quero deixar aqui o primeiro conto lido em minha trajetória.
Apelo
Dalton Trevisan
Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho. Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia. Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário