A LIÇÃO DO LEPO-LEPO
Você deve estar assombrado, "prof. Emerson jamais usaria isso para sua aula", mas na verdade o autor de tal texto me surpreendeu com a verdadeira aula de ONOMATOPEIAS apresentada a partir da repetição 'lepo-lepo'. Vale a leitura!
Brincando, brincando, a repetição pode indicar múltiplas realidades
A lavancado por dancinha comemorativa de Neymar e Daniel Alves, a música
Lepo-lepo, da banda baiana Psirico, foi o sucesso do carnaval de 2014
que ainda estronda os ouvidos brasileiros neste meado de ano. No sentido
oposto do funk ostentação, que pretende a afirmação por carros, motos,
bebidas e outros sonhos de consumo, o protagonista da canção assume que
"está na pior": péssima situação financeira, não tem moradia, seu carro
foi tomado pelo banco e, precisamente por isso, pode certificar-se das
reais intenções da amada: "E se ficar comigo é porque gosta do meu
lepo-lepo": ostentação de outras qualidades...
No melhor estilo
do humor nordestino, o da malícia subentendida, não se afirma claramente
o que é "lepo", nem "lepo-lepo"... E o verbete da Wikipedia até tenta
forçar uma margem "família" para a expressão:
"A mais aceita é
que a expressão significa performance sexual, apesar de também ser
possível interpretar como charme ou carinho".
Bunga-bunga
Naturalmente,
para indicar charme não caberia a reduplicação, que imediatamente gerou
piadas e paródias, substituindo "lepo-lepo" por "nheco-nheco", do
colchão. É como se pretendêssemos interpretar os bunga-bunga de Silvio
Berlusconi, como afeto ou carinho. Neste caso, a origem é mais clara:
uma antiga piada (que teria sido contada a Berlusconi por Kadafi): um
grupo de antropólogos e exploradores na África é aprisionado por uma
tribo selvagem e o chefe pergunta se eles preferem a morte ou
bunga-bunga (?).
Um primeiro membro da expedição pede
bunga-bunga e é brutalmente violentado pelos machos da tribo e, em
seguida, queimado vivo. Um segundo, pensando que os nativos tinham se
equivocado e entendido "morte", pede também o bunga-bunga e tem o mesmo
destino. Então o terceiro pede diretamente a morte e o chefe da tribo
diz: "Pediu morte terá morte, mas antes bunga-bunga!".
"Lepo-lepo",
como "bunga-bunga" (ou a "conga-conga" da Gretchen), evocam o caráter
de descontrole, de pega-pega, de treme-treme, de rala-rala que a
repetição em alguns casos indica:
"A manifestação estava pacífica, mas quando chegou na avenida começou o quebra-quebra";
"A reunião ia bem, mas quando chegou o pessoal do sindicato, aí virou oba-oba";
"O dia da mudança foi um lufa-lufa";
"A saída do estádio foi comportada até começar o empurra-empurra";
"Em época de visita do MEC, a secretaria da faculdade é aquele vuco-vuco";
"Tá rolando um zum-zum-zum, um diz-que-diz-que de que vai haver cortes nos salários".
Intensidade
A
repetição muitas vezes denota intensidade: o falar demasiado é
"blá-blá-blá", "nhem-nhem-nhem", "patati-patatá" ou "lero-lero"; filme
de muito tiro é "bangue-bangue"; despedida para valer é "tchau-tchau"; e
o cara cheio de si chega chegando e diz "tô que tô" (ou "vamo que
vamo"), enfim, ele quer porque quer se impor.
Outras vezes a
ênfase está na mera repetição: pisca-pisca, bilu-bilu, chupa-chupa,
cri-cri. Que por vezes recolhe onomatopeias como "teco-teco",
"reco-reco", "quero-quero", "xique-xique", etc. Ou na alternância, como
em "troca-troca" ou "pingue-pongue".
O falar infantil tem
tendência a repetir sílabas: nos apelidos carinhosos (Juju, Mimi, Dudu,
Fafá, Zezé), no ambiente familiar (vovó, mamãe, titia), em suas
atividades, como comer (papá), ou necessidades (pipi, cocô, naná). Já a
repetição "assim assim" indica indeterminação: não posso dizer que estou
bem (não sou nenhum bam-bambã) nem mal: estou assim assim. Como
antigamente era frequente a saudação (de indeterminação): "Ô, Fulano,
que bom te rever, vejo que você está cada vez mais cada vez...".
Antecedentes
Nos
evangelhos, Jesus emprega a repetição como forma de carinhosa censura,
como que chamando a atenção para algo que esperava do interlocutor e
está um pouco decepcionado pela sua falta de sensibilidade. Assim,
quando Marta se queixa de que sua irmã Maria não a ajuda no trabalho da
casa e fica ouvindo o Mestre, Jesus a repreende:
"Marta, Marta, tu te ocupas de muitas coisas, mas só uma é necessária" (Lc 10, 41).
E ante Jerusalém, que não sabe corresponder a seu amor:
"Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes eu quis reunir teus filhos... mas tu não quiseste" (Mt 23, 37).
E a Saulo, que antes de se converter perseguia os cristãos:
"Saulo, Saulo, por que me persegues?" (At 9, 4).
Caberiam
muitos outros casos, mas detenho-me aqui, pois já são suficientes para
mostrar que, brincando brincando, a repetição pode sutilmente indicar
diversas realidades.
http://revistalingua.uol.com.br/textos/104/a-licao-do-lepo-lepo-312975-1.asp
Nenhum comentário:
Postar um comentário